A poesia é um rio que corre em mim, sempre em busca de suas nascentes.

Alívio


Agora sinto a liberdade, que em momento algum senti na vida
Nem as minas do Rei Salomão poderiam pagá-la
Sinto-me parte do vento e do tudo do nada
Não sinto meus pés saírem do chão
Sinto o chão sair-lhes... abandoná-los!
Não luto contra a leveza que me possui
“Emplume-me, emplume-me!”
Grito em liberdade, no recheio, entre as bandas dos mundos
O corpo reage sem agir, como se não fosse mais meu
— Talvez nunca tenha sido
Gradativamente sinto o abandono do sofrimento
A presença do desconhecido me identifica geneticamente
Como cobaia passiva dos direitos e ativa dos resultados
Entrego-me ao procedimento cirúrgico enérgico
Na esperança, que os resultados possam salvar o mundo
— O meu mundo.
Convalesço, aceito, resguardo e aguardo:
O fim!
Para que possa me aliviar da maior das dores:
O viver!
 
* "Tela" de Amanda Paraíso

Vida de cachorro


* Quadro de Ricardo Baroni / Foto: Debora Avelar

O corvo



Um corvo pousou em minha mão
Confortável como se vigiasse uma lápide
Depois de uma longa conversa, em silêncio.
Descobri ser a personificação da solidão.

Satisfez-me, satisfaz-me, desfez-me, desfaz-me.
Ceou em meus pensamentos, bicando as feridas.
Não me machucou, mas devorou tudo o que tinha.
Descobri ser um necrófago com aparato cognitivo.
Guiou-me pela inocuidade de meu mal.
Através de seus olhos negros, a clareza se expandia.
Acompanhou-me pelo abismo, enquanto eu caía.
De nada adiantam asas, quando não há pousadouro.

O sol nasceu; ele partiu deixando fezes em minhas mãos.
— Os corvos têm a capacidade de reconhecer velhos amigos —
Foi levando consigo uma parte de minha solidão.
Mas, ao anoitecer, regressará, em seu imperativo místico.

Eu vejo um corvo ao me olhar!
Eu vejo um corvo em meu olhar!


* Foto de Lelasan / Google