A poesia é um rio que corre em mim, sempre em busca de suas nascentes.

Ânimo


Eu não sinto ânimo para ouvir minha banda favorita
Eu não sinto ânimo para comer o churros da esquina
Eu não sinto ânimo para comer abará com café
Eu não sinto ânimo para ligar para a garota que me alucina
Eu não sinto ânimo para ver um filme do Almodóvar
Eu não sinto ânimo para fazer aquele suco colorido
Eu não sinto ânimo para noitadas de sextas
Eu não sinto ânimo para o apocalipse
Eu não sinto ânimo para surubas com intelectuais irlandesas
Eu não sinto ânimo com a casa nova
Eu não sinto ânimo com atrações mútuas no Badoo
Eu não sinto ânimo com o WiFi liberado
Eu não sinto ânimo com o festival de filmes iranianos
Eu não sinto ânimo com a nova temporada de Dexter
Eu não sinto ânimo com o cheiro de pão vindo da padaria
Eu não sinto ânimo com a chegada do Carnaval
Eu não sinto ânimo com o assassinato de políticos
Eu não sinto ânimo com o feriado prolongado
Eu não sinto ânimo em nada
Sinto apenas a animosidade da festa da vida
Sobre o meu cadáver fora de moda e ainda vivo.

BorBoleTe-Se

 
* Foto: da amiga Vanessa


*Foto via Google, de "armengue" chinês

Refém dos rascunhos


Tento fugir, mas sempre sou coagido
Não há como escapar
Eles estão em todo lugar
Guardanapos, versos de panfletos e etiquetas
Ofícios, cartões, embalagens, até digitais
Pedaços de papéis me seguem
Com suas faces pálidas a serem tatuadas
Em sua epiderme vegetal, posso dar forma ao meu animal
Me seguro, conto até mil, mudo de assunto mental
Penso numa parede negra, finjo que não tenho caneta
Mas suas faces pálidas olham para mim
E eu... as rascunho com minhas definições
Ora por prazer, ora por lazer, ora por não ter o que fazer
Ora por servidão, ora por devassidão, ora por privação
Nenhum papel é solitário, abandonando, estando comigo
Eles sempre portam meus rascunhos fixos.

Alívio


Agora sinto a liberdade, que em momento algum senti na vida
Nem as minas do Rei Salomão poderiam pagá-la
Sinto-me parte do vento e do tudo do nada
Não sinto meus pés saírem do chão
Sinto o chão sair-lhes... abandoná-los!
Não luto contra a leveza que me possui
“Emplume-me, emplume-me!”
Grito em liberdade, no recheio, entre as bandas dos mundos
O corpo reage sem agir, como se não fosse mais meu
— Talvez nunca tenha sido
Gradativamente sinto o abandono do sofrimento
A presença do desconhecido me identifica geneticamente
Como cobaia passiva dos direitos e ativa dos resultados
Entrego-me ao procedimento cirúrgico enérgico
Na esperança, que os resultados possam salvar o mundo
— O meu mundo.
Convalesço, aceito, resguardo e aguardo:
O fim!
Para que possa me aliviar da maior das dores:
O viver!
 
* "Tela" de Amanda Paraíso

Vida de cachorro


* Quadro de Ricardo Baroni / Foto: Debora Avelar

O corvo



Um corvo pousou em minha mão
Confortável como se vigiasse uma lápide
Depois de uma longa conversa, em silêncio.
Descobri ser a personificação da solidão.

Satisfez-me, satisfaz-me, desfez-me, desfaz-me.
Ceou em meus pensamentos, bicando as feridas.
Não me machucou, mas devorou tudo o que tinha.
Descobri ser um necrófago com aparato cognitivo.
Guiou-me pela inocuidade de meu mal.
Através de seus olhos negros, a clareza se expandia.
Acompanhou-me pelo abismo, enquanto eu caía.
De nada adiantam asas, quando não há pousadouro.

O sol nasceu; ele partiu deixando fezes em minhas mãos.
— Os corvos têm a capacidade de reconhecer velhos amigos —
Foi levando consigo uma parte de minha solidão.
Mas, ao anoitecer, regressará, em seu imperativo místico.

Eu vejo um corvo ao me olhar!
Eu vejo um corvo em meu olhar!


* Foto de Lelasan / Google